Estudo da organização sem fins lucrativos monitorou dados de mais de 800 grupos de mensagem e 400 comunidades em redes sociais. Bagagem com 50 aranhas é apreendida pelo Ibama em São Paulo
Divulgação/Ibama
A Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) produziu e publicou um novo relatório neste sexta-feira (17) sobre o comércio de animais silvestres na Amazônia brasileira. Dentre outros pontos, o documento destaca as principais rotas, espécies mais visadas, usos pelos compradores e estruturas da rede de tráfico.
Nas médias desde 2001, acompanhadas pela ONG, a atividade criminosa retira da natureza brasileira cerca de 38 milhões de animais anualmente, sendo que apenas um em cada dez consegue chegar às mãos do consumidor final, enquanto nove morrem durante a captura ou transporte.
Mais de 80 aves que iam ser traficadas são encontradas dentro de carro em caixas de papelão, em Goiânia
Divulgação/Polícia Militar
Segundo Dener Giovani, coordenador geral do Renctas, a ONG acompanha as movimentações de mais de 800 grupos de mensagem e 400 comunidades em redes sociais, além de anúncios em marketplaces. A organização sem fins lucrativos atua há 25 anos no monitoramento online do comércio ilegal de animais silvestres na Amazônia e também em outras localidades.
Na análise dele, um número cada vez maior de espécies amazônicas vem sendo comercializado em grupos de mensagem. “Nos últimos três anos, percebemos um crescimento muito intenso de animais peçonhentos como aracnídeos, escorpiões, serpentes e sapos”.
Outro ponto destacado pelo relatório é a vulnerabilidade das fronteiras do Brasil com o Suriname e a Guiana Francesa para a saída de animais silvestres. Recentemente, essas rotas também passaram a ser utilizadas para entrada de animais exóticos no país, cujos compradores são brasileiros.
Aranha conhecida como tarântula ruiva brasileira
Arquivo Renctas
“O Brasil sempre ocupou um lugar de destaque no tráfico de animais silvestres como um grande fornecedor e agora a gente percebeu que o Brasil também está se destacando como um importador, o que também é um problema muito sério porque essas espécies podem levar a um desequilíbrio ambiental enorme e elas não têm predadores naturais”, afirma Dener.
A afirmação encontra base científica, uma vez que o bioma apresenta 13,2 mil espécies de plantas, 128 mil invertebrados, 1 mil de aves, 3 mil de peixes, 550 répteis, 311 mamíferos e 163 anfíbios descritos pela ciência. Uma biodiversidade gigantesca e, infelizmente, vulnerável.
“Todo o material coletado para a realização do presente estudo será encaminhado para as autoridades brasileiras, para que sejam tomadas as devidas providências para a investigação e a responsabilização dos possíveis atos criminais cometidos pelos usuários das redes sociais durante o período de levantamento dos dados”, afirma a organização.
Uma prática histórica
Mais do que uma visão da prática criminosa no presente, o relatório do Renctas inclui as raízes históricas do tráfico de animais silvestres na região amazônica desde o século passado.
A revisão de literatura pelos pesquisadores aponta que, em um período de 19 anos (1935-1954), foram comercializados cerca de 140 mil peixes-boi na Amazônia. Além disso, no ano de 1968, somente a cidade de Altamira (PA), produziu 36 mil quilos de peles de animais silvestres para a exportação.
Depósito de peles de animais silvestres em Manaus
Arquivo Renctas
Mas o comércio da biodiversidade não se limitava só a peixes e mamíferos. Na década de 1910, um único comerciante de Londres importou 400 mil aves da Amazônia, segundo a bibliografia do estudo. Vinte e dois anos depois, o estado do Pará exportou 25 mil beija-flores para serem utilizados como enfeites de caixas de chocolate na Itália.
“A história da ocupação da Amazônia brasileira, das primeiras expedições científicas até o presente, foi construída através da repetição sistemática de inúmeras práticas predatórias. A equivocada visão de seus primeiros colonizadores, de que a região era uma inesgotável fonte de riquezas naturais, persiste até hoje”, informa o levantamento.
Usos e espécies mais visadas
De acordo com o mapeamento do Renctas, os usos e destinos da fauna silvestre traficada no Brasil incluem:
Caça de subsistência ou iguaria culinária
Animais silvestres como PETs
Uso cultural tradicional
Uso para a pesquisa científica não autorizada
Coleções particulares
Turismo, “arte” e moda
O tipo de tráfico mais frequente na Amazônia é a caça para alimentação, superando até mesmo a modalidade de tráfico para uso como PET, a mais comum no restante do país. “Por mais surpreendente que possa parecer, na Amazônia, o hábito de se manter espécies silvestres como animais de companhia é menos frequente do que nas demais regiões do Brasil”.
Por outro lado, os números mostram que a caça para alimentação é amplamente praticada fora dos grandes centros urbanos. Anualmente, são caçados mais de 23 milhões de animais para serem utilizados como fonte proteica na Amazônia, totalizando cerca de 90 mil toneladas de carne silvestre.
Espécies silvestres amazônicas mais traficadas por grupo animal
Segundo o documento, não foram considerados dados oficiais de apreensão de fauna silvestre, uma vez que, em grande parte, são imprecisos quanto à descrição da espécie. “Além disso, o número de animais apreendidos pelos órgãos de fiscalização ambiental representa apenas uma ínfima parte do volume de animais traficados no país”, informa.
Solução passa por mudança cultural
Para o coordenador da ONG, expor a realidade do tráfico nacional e internacional de animais silvestres é fundamental para que a sociedade civil possa cobrar das autoridades ações efetivas para reduzir os danos das práticas criminosas à biodiversidade.
Danos que vão além da possível extinção de espécies ameaças. “A introdução de espécies invasores traz problemas gravíssimos, não sé ambientais, mas de saúde pública. Você imagine não saber que seu vizinho pode estar criando uma naja asiática dentro de casa. Se esse animal escapa, pode causar um acidente”.
Um dos destinos de borboletas capturadas na natureza é servirem como enfeite de vasos sanitários
Arquivo Renctas
Na avaliação de Dener, a legislação ambiental brasileira está adequada no papel, mas falha quando o assunto é a aplicabilidade das leis.
“No Brasil, a maior parte dos crimes ambientais a penalidade vai até um ano de reclusão e como são penas com menos de quatro anos, entra como crimes de menor potencial ofensivo. Então criminoso paga uma cesta básica ou faz um acordo para assistir uma palestra. Acaba que o crime acaba compensando pro traficante porque ele ganha muito dinheiro e o risco que ele tem é pequeno”.
Pensando nesse sentido, a resolução do problema acaba passando por mudanças culturais, substituindo comportamentos nocivos à biodiversidade por outros sejam mais conscientes. Um bom exemplo é a criação de aves em gaiola, que pode ser substituída pela prática do birdwatching.
“Enquanto houver demanda vai fazer oferta. A gente pode ter melhor legislação do mundo, a gente pode ter policiais bem preparados, mas enquanto houver demanda vai ter oferta”, finaliza o coordenador.
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