Antes que os carros alegóricos sejam concluídos, as fantasias brilhem na avenida e o público cante com sua escola a plenos pulmões, a letra e o ritmo para formar os sambas-enredos das agremiações nascem em um espaço invisível: na imaginação dos compositores no Carnaval. É graças a eles que as histórias se transformam em versos, emoções em melodias, e enredos em sambas que ecoam no Complexo Nego Quirido, em Florianópolis.
Os compositores no Carnaval têm o papel de fazerem os sambas-enredos das escolas nascerem e ganharem vida – Foto: Leo Munhoz/ND
No Carnaval, os compositores ocupam um papel central, tecendo a trilha sonora que conduz cada escola de samba. Com uma caneta, um cavaquinho e muita inspiração, alguns se dedicam a uma única agremiação, enquanto outros espalham sua arte por várias. Mas todos têm algo em comum: a paixão pelo samba e o compromisso de emocionar.
Para entender melhor essa arte e a entrega que ela exige, a reportagem do Grupo ND conversou com cinco compositores que carregam anos de história e conquistas no Carnaval de Florianópolis. Entre refrãos inesquecíveis e disputas acirradas, eles revelam os bastidores da criação de um samba-enredo, os desafios da função e o que significa ouvir sua obra na avenida.
Cinco histórias que mostram como compositores no Carnaval criam os sambas-enredos
Quase 60 sambas-enredos na conta
Entre os compositores mais reconhecidos de Florianópolis está José Antônio Vicente, popularmente conhecido como Vicente Marinheiro. Com mais de 50 anos no samba, ele acumula uma vasta produção musical que inclui marchinhas, boleros, partido-alto e, claro, sambas-enredos.
Nascido em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, Marinheiro iniciou sua relação com o Carnaval ainda na década de 1960, antes de ingressar na Marinha e se estabelecer em Florianópolis. “A minha formação foi lá na Unidos de Vila Isabel, quando nem quadra de samba tinha ainda. Mas a vida me trouxe para cá e aqui me entrosei na Unidos da Coloninha. Fui criando raízes”, conta.
A produção musical de Marinheiro é extensa e diversificada. “Só de samba-enredo, eu tenho 28 composições em Florianópolis e 28 no Rio Grande do Sul. Fora os sambas de meio de ano, os hinos, como fiz na Coloninha, para a velha-guarda da Dascuia e por aí vai”, relembra.
O envolvimento com o samba catarinense vai além das composições, isso porque, ao longo dos anos, Marinheiro construiu laços com diversos músicos e intérpretes que hoje fazem parte da cena local. “Eu tenho uma afinidade muito grande com o pessoal do samba daqui. São muitos, se eu fosse citar todos, ficaria o dia inteiro, mas nomes como Marçal Santini, Rafael Leandro, Jeison Dias, Dudu Cadência, Juninho Zuação e Paulinho Carioca, que é meu compadre. Fizemos muito trabalho juntos”, destaca.
Vicente Marinheiro e seu apadrinhado, Juninho Zuação – Foto: Germano Rorato/ND
Em defesa do samba fácil de cantar
Outro nome de grande relevância no Carnaval de Florianópolis é Paulo Sérgio Peixo Góes Júnior, mais conhecido como Juninho Zuação, apadrinhado por Marinheiro.
Compositor há mais de 20 anos, ele também atua como diretor de Carnaval da Unidos da Coloninha. Juninho cresceu no meio do samba, influenciado pelo pai, Paulinho Carioca, e por Vicente Marinheiro. “Quando eu era criança, meu pai e meu padrinho faziam muito samba-enredo, e eu ficava com um balde tentando acompanhar. Cresci vendo isso e sonhando em fazer minha própria história”, conta Juninho.
A trajetória como compositor começou oficialmente em 2004, quando venceu o concurso de samba-enredo da Coloninha já em sua primeira participação. Desde então, acumulou diversas vitórias e hoje soma mais de 20 sambas-enredos no Carnaval, escrevendo para a Coloninha, Consulado, União da Ilha da Magia, Protegidos da Princesa, Dascuia, Império Vermelho e Branco e Nação Guarani.
Juninho também se destacou na bateria, atuando como ritmista, mestre e diretor. Em 2013, fundou um grupo-show independente. “Hoje, nossa bateria é a mais atuante e independente de Santa Catarina, com 12 anos de trajetória”, afirma.
Sobre sua marca como compositor, Juninho destaca a importância de criar sambas com letras acessíveis e refrãos marcantes. “O povão gosta de coisa fácil de cantar. Claro, tem sambas com melodias mais elaboradas, mas os refrãos chicletes são os que ficam na boca do povo”, defende.
Entre suas composições mais conhecidas estão “Da liberdade e da cana à euforia, da cachaça à alegria, eu quero é mais”, de 2006.
“É chique, é charme, é show”
Outro nome destaque no Carnaval de Florianópolis é Gilson Célio Veloso, conhecido como Celinho da Copa Lord. Compositor há 47 anos, ele iniciou sua trajetória na escola em 1985 e, desde então, tornou-se uma das figuras mais representativas da agremiação.
Além de sambas-enredos, Celinho também compõe sambas de meio de ano, explorando temas diversos como amor, poesia e natureza. “Eu falo muito sobre amor, sou um romântico, mas componho sobre o cotidiano também. A composição é um estado de espírito, uma inspiração que vem muitas vezes como um passe de mágica. É coisa de Deus, quando a gente se aproxima mais dele”, afirma.
Para Celinho, a dinâmica do samba mudou ao longo dos anos, tornando-se mais acelerada, o que exige adaptação dos compositores. “Para os antigos complica um pouco mais, porque o ritmo da bateria é muito mais acelerado.
O samba, consequentemente, se torna mais acelerado, e isso perde um pouco da melodia. Mas essa rapaziada nova é muito boa, eles têm feito grandes sambas e isso é importante para o nosso Carnaval de Florianópolis”, celebra.
O sambista também destaca a importância da troca entre gerações. “Aprendi muito com mestres como Edu Aguiar, um grande maestro da composição, Paulinho Carioca e Vicente Marinheiro, mas também aprendo com a rapaziada nova, e vai se moldando a atualidade.
O importante é sempre aprender. E a mistura de experiência e juventude sempre dá um bom caldo que resulta em um grande samba”, reflete. Um de seus marcos na Copa Lord é o bordão “É chique, é charme, é show”, que surgiu como um incentivo para uma candidata a rainha do Carnaval e acabou se tornando icônico na escola. “A Jaqueline Aranha estava desanimada antes de subir ao palco, e eu criei o grito de guerra para ela. Depois, percebi que funcionava muito bem para a escola também e adaptei pra Copa Lord”, recorda.
Celinho da Copa Lord tem quase meio século de carreira como compositor no Carnaval – Foto: Arquivo Pessoal/ND
Mais de 70 composições espalhadas pelo Brasil
Outro nome importante na cena do samba é Willian Tadeu, compositor, historiador, carnavalesco e apaixonado por contar histórias. Neste ano, seu nome está na composição de três sambas-enredos das agremiações Acadêmicos do Sul da Ilha, Consulado e Copa Lord.
Em 2024, escreveu o samba da Unidos da Ilha da Magia, escola campeã do Carnaval. Com cerca de 70 sambas espalhados pelo Brasil, Willian compôs também para escolas de São Paulo, Porto Alegre, Espírito Santo e Manaus. “São várias cidades em que vamos formando parcerias e conquistando espaço”, afirma.
Seu envolvimento com o Carnaval começou na infância, quando assistia às vinhetas na televisão e se encantava com os sambas que narravam grandes acontecimentos. Esse fascínio o levou a se aprofundar no universo dos sambas-enredos e a se tornar compositor ainda na adolescência. Aos 18 anos, conquistou sua primeira vitória em um concurso de samba-enredo.
A abordagem detalhista e dedicação à pesquisa fazem dele um compositor meticuloso, que mergulha na história de cada enredo antes de criar suas composições. “A composição é a coisa que eu mais gosto de fazer na minha vida. E eu acho que o samba-enredo tem esse encanto de contar histórias para as pessoas”, analisa.
Normalmente, o nome de Willian Tadeu está acompanhado de outros compositores, padrão que se repete em boa parte das escolas, cujas composições têm pelo menos três autores. Para ele, essa mistura é necessária: “Acredito que a gente sempre se enriquece quando formamos parcerias”.
Neste ano, três escolas de samba de Florianópolis têm composições assinadas por Willian Tadeu – Foto: Arquivo Pessoal/ND
Da passarela aos blocos de rua
Também destaque do Carnaval da Capital catarinense, Conrado Laurindo teve sua primeira aula de cavaquinho aos 14 anos, com Leonel Januário, compositor da Embaixada Copa Lord, e presenciou a criação de um samba-enredo sobre a Ponte Hercílio Luz, experiência que o marcou profundamente.
Criado na Consulado, começou na bateria-mirim e logo passou a se interessar pela composição, inspirado pelos sambas de Josué, Carlão e Adriano Cavaco.
Aos 16 anos, Conrado entrou na ala de compositores do Consulado após compor o hino de um time local. No mesmo ano, participou de seu primeiro concurso de samba-enredo e ficou em segundo lugar. No ano seguinte, venceu o concurso em parceria com William Tadeu e Gustavo, e desde então acumula 72 sambas na passarela, além de composições para blocos de rua e escolas de samba em Porto Alegre e São Francisco.
Para Conrado, a chave do sucesso de um samba-enredo está em um refrão forte e de fácil assimilação. “O samba precisa grudar, envolver o público e garantir a harmonia da escola. Muitas vezes, mudamos o refrão até o último momento para garantir o impacto necessário”, explica.
Seu samba sobre Antonieta de Barros, um dos mais marcantes do Carnaval de Florianópolis, é um exemplo de sua busca por representatividade e respeito.
Conrado entrou na ala de compositores do Consulado quando tinha 16 anos – Foto: Arquivo Pessoal/ND
Desfile das escolas de samba em Florianópolis
Quando: 28 de fevereiro e 1° de março
Onde: Complexo Nego Quirido
Ingressos: Complexo Nego Quirido, site Blueticket e em lojas autorizadas do Fort Atacadista
Transmissão: NDTV