Mulher se torna policial e 15 anos após abusos prende o próprio agressor em SC; caso vira livro

O dicionário define “calha” como um canal que conduz a água da chuva, aquela que escorre dos telhados ou dos rios. Mas, para a policial civil de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, Jessica Lais Martinelli, essa palavra carrega muito mais do que um simples significado, ela reflete abusos sofridos ainda na infância.
O termo remonta a um lugar carregado de memórias, algumas felizes, outras profundamente dolorosas. Das feridas do passado nasceu um livro, onde cada página se transformou em um testemunho de uma jornada marcada por medo, angústia e incertezas, enquanto explora a complexidade da violência sexual infantil.

Jessica trabalha na Polícia Civil de Santa Catarina e lançou um livro sobre que trata sobre abusos sexuais que sofreu na infância e como ela prendeu o abusador, anos depois – Foto: Albeneir Mello/ND
Aos 26 anos, já como agente da Polícia Civil, Jessica transformou a cicatriz em justiça e, com as próprias mãos, prendeu o homem que lhe roubou a infância.
Livro A Calha
“A calha” é um livro escrito por Jessica que narra os detalhes sobre a própria infância, quando, aos 9 anos, foi abusada sexualmente. Aos 15, conseguiu denunciar o homem e, aos 26 anos, ela prendeu o próprio abusador, em Chapecó.
Toda a trajetória está relatada no livro, que será lançado neste mês pela escritora. “Lidar sozinha com esse trauma é muito difícil”, conta Jessica sobre o processo de escrita.
Com 33 anos, ela compartilha abertamente a vivência e deseja que sua história seja um farol de esperança para pessoas que passam ou passaram pela situação.
Os abusos foram cometidos por uma pessoa próxima da família, que, aproveitando-se da confiança dela, na época apenas uma criança, perpetuou os crimes tanto em Chapecó, quanto durante acampamentos no Rio Grande do Sul.
Buscar a cura após os abusos
A vergonha e o medo de ser desacreditada fez parte da história de Jessica e são sentimentos que acompanham a vida das vítimas de violência sexual. Porém, cada pessoa tem o próprio jeito de buscar a cura.
O principal conselho é que, diante de situações de violência ou abusos, as pessoas busquem alguém de confiança para compartilhar o que estão vivenciando, pois contar com o apoio pode ser fundamental para a denúncia e a busca por justiça.
“E que essas pessoas saibam o quanto é importante mexer na ferida para que você se cure, pois acabará carregando marcas para a vida toda”, orienta Jessica.
Início da escrita do livro
A ideia do livro iniciou em 2018, quando Jessica deu uma entrevista para uma agência de notícias. Foi a primeira vez que ela falou sobre os abusos e a prisão do autor.
Aos 26 anos, Jessica prendeu o homem que abusou dela na infância – Foto: Arquivo Pessoal/ND
No entanto, com o passar dos anos, a escrita foi tomando forma e, no ano de 2024, se concretizou. Durante o processo, Jessica se viu avançando na história, mas ao chegar na parte da infância, algo a fez parar. Reviver aquelas memórias não foi fácil, e a escrita precisou de tempo para seguir adiante.
Com o apoio dos amigos, Jessica encontrou forças para continuar o projeto. Depois disso, as palavras fluíram sem interrupções até a conclusão da obra.
“No livro não abordo apenas a dor, claro, terão muitos episódios dolorosos, mas há muitos trechos de alegrias e superação. Sempre ficaram resquícios, não tem como você dizer, eu tive uma cura completa, o abuso você carrega para a vida inteira”, conta a escritora.
Entre inúmeros desafios até a condenação e prisão do agressor, a policial civil enfrentou dificuldades como falhas e a longa demora no processo, que se arrastou por cerca de oito anos entre a denúncia e a sentença.
A escritora narra em detalhes toda a trajetória dos abusos, da prisão e de como, no meio da graduação em Direito, decidiu seguir carreira na área policial.
Jessica é agente de Polícia Civil e atua em Chapecó, no Oeste de Santa Catarina e relatou em livro como foi prender o próprio agressor após abusos na infância – Foto: Arquivo Pessoal/ND
“Eu tive a felicidade de, com as minhas próprias mãos, prender o homem que me abusou dos 9 aos 11 anos. Se eu não tivesse feito isso, ele nunca teria pagado pelo que fez”, explica.
O livro “A Calha” já pode ser adquirido em diversos sites, tanto na versão e-book quanto na versão física.
Novo livro
Em breve, a policial civil pretende lançar um livro sobre um novo capítulo da vida, quando enfrentou a violência doméstica.
SC registra em média 5 estupros de vulnerável por dia
Santa Catarina registrou 5,3 casos de estupro de vulnerável por dia em 2023. Os dados são do MPSC (Ministério Público de Santa Catarina) e no mesmo ano as Promotorias de Justiça das comarcas catarinenses apresentaram um total de 1936 denúncias de estupro de vulnerável.
O Código Penal define estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos” e com “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
Maioria dos casos de estupro de vulnerável são cometidos por familiares e conhecidos
No Brasil, três crianças são abusadas a cada hora, sendo que 51% delas têm entre 1 e 5 anos. São 500 mil crianças e adolescentes explorados sexualmente por ano, segundo informações da campanha nacional Maio Laranja.
Um boletim epidemiológico do Ministério da Saúde aponta que, entre os 202,9 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes registrados de 2015 a 2021, 68% foram cometidos por familiares, amigos ou conhecidos da vítima. Somente 7,5% dos casos são denunciados no país.
Denuncie!
Conforme o TJSC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina), qualquer pessoa que testemunhar ou suspeitar que criança ou adolescente seja vítima de abuso, violência ou negligência, pode denunciar de forma identificada ou anônima através dos canais abaixo:

Disque 100 – Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos;
Disque 181 – Polícia Civil;
Conselho Tutelar do Município;
Promotorias de Justiça da Comarca;
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (+55 61 99656-5008);
Polícia Civil (+55 48 99884-0011);

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